domingo, 14 de agosto de 2011

O fuzilamento da juíza Patrícia Acioli mostra a ousadia fomentada pela impunidade instalada no Brasil e o abismo entre juízes da “linha de frente” e a cúpula judiciária

A juíza Patrícia, de 47 anos e titular de vara Criminal em São Gonçalo, foi fuzilada ontem, por volta das 23h30, na entrada da garagem da sua casa localizada em Niterói. A execução restou presenciada pelos seus filhos. A ação criminosa assemelhou-se àquela ocorrida em 2003, quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) fuzilou, também em ação surpreendente, o juiz Machado Dias. Machado Dias era responsável pela Vara de Execuções Criminais e Corregedoria do presídio de Presidente Venceslau (São Paulo), onde estavam custodiados os principais líderes do PCC. Por evidente, a covarde ação criminosa que vitimou a juíza Patrícia decorreu de represália. Patrícia colocava o dever funcional em primeiro lugar. Pelo que informam os juízes estaduais colegas de Patrícia, ela era uma juíza corajosa (não se intimidava), com mais 20 anos de carreira. Patrícia não tinha medo de exercer a sua autoridade e os riscos eram encarados por ela como parte integrante de quem tem deveres e poderes. Ela nunca deixou, no momento certo, de impor prisões ou sentenciar réus. Em muitos casos, a juíza Patrícia prendeu e condenou policiais militares que forjavam autos de resistência (casos, na verdade, de execuções sumárias e sem resistência do eliminado), participavam de grupos de extermínio de pessoas e consumavam extorsões. Pelo que se sabe, a polícia judiciária (polícia civil do estado do Rio de Janeiro) direciona as investigações em fatos judiciários a envolver policiais militares. Como ensinou o juiz italiano Giovanni Falcone, dinamitado em 1992 pela Cosa Nostra siciliana, além da represália, as organizações criminosas, com ações espetaculares, procuram transmitir mensagens e difundir o medo. E silenciar testemunhos é uma das metas: “lei do silêncio”, também conhecida por omertà. O consagrado escritor e saudoso jornalista siciliano Leonardo Sciascia cunhou, diante dos assassinatos mafiosos, a expressão cadaveri eccellenti. Ele alertava que a Máfia siciliana (Cosa Nostra), para difundir o medo, precisava de vítimas anônimas e de “cadáveres de excelência” (cadaveri eccelenti), como pessoas famosas ou com cargos relevantes na proteção social.O magistral cineasta sicialiano Francesco Rosi (somente um “s”), com base em Sciascia, elaborou e dirigiu, em 1976, o imperdível filme Cadaveri Eccellenti. Dispensável frisar que nunca foi exibido no Brasil.No caso, Patrícia Acioli era um cadavere eccelente dada a sua fama de incorruptível e de não se intimidar diante dos potentes.Convém observar que os juízes que atuam em primeiro grau de jurisdição, na chamada linha de frente, é que tomam a iniciativa de solicitar aos órgãos judiciários administrativos (como regra, aos desembargadores encastelados nos prédios dos tribunais e, quase sempre, sem conhecimento das dificuldades e dos riscos corridos pelos seus colegas da “linha de frente”) escolta.O presidente do Tribunal de Justiça, em pronunciamento, acaba de informar que a juíza Patrícia não havia solicitado escolta. Para um seu familiar, ela já teve escolta, que foi retirada. PANO RÁPIDO. Recente lei que modificou o código de processo penal impede o juiz de decretar a prisão preventiva de membros de organizações criminosas (quadrilhas e bandos: a incluir os de extermínio) quando primários. Isso também serve para explicar a ousadia das associações delinquênciais de poderosos (caso da corrupção em ministérios, por exemplo) e de potentes (colarinhos brancos, empreiteiras, pré-mafias etc).
Wálter Fanganiello Maierovitch








A tragédia anunciada. Ou: Se morte de juíza restar impune, todo o Judiciário brasileiro será refém do crime


Ainda se sabe pouco sobre o assassinato da juíza Patrícia Acioli (ver post abaixo), mas já se sabe bastante sobre as circunstâncias em que ela se deu. Trata-se de uma morte LITERALMENTE anunciada. A chance de que ela tenha sido executada pelo crime organizado, dado que meteu muita gente na cadeia — especialmente policiais ligados às milícias — é gigantesca. Pra começo de conversa, é preciso parar com a retórica oca e pomposa de que crimes assim não intimidam os juízes. Intimidam, sim! Ninguém escolhe essa carreira para morrer e fazer órfãos e viúvos. Ser assassinado não está “no preço” de ser juiz. Ao contrário: uma de suas tarefas é pôr assassinos na cadeia. É bom lembrar que o assassinato sistemático de juízes foi uma das táticas a que recorreram os traficantes colombianos para tomar o estado, o que quase conseguiram. Ou bem os juízes têm segurança para fazer o seu trabalho, ou é a sociedade que fica exposta ao crime. É evidente que segurança absoluta não existe. A questão é outra: dadas as ameaças que Patrícia sofria, pode-se afirmar que o estado fez o necessário para garantir a sua proteção? Não! É inacreditável que essa mulher andasse sem seguranças armados. Ou pior: a escolta foi suspensa. Também impressiona o fato de que não circulasse num carro blindado. Aqui e ali, notam-se linhas uns tanto cínicas, como a culpar a própria vítima por sua morte. “Ah, ela não quis segurança” Ou: “Ela não gostava de carro blindado.” Tenham paciência! Nesses casos, não tem “gostar” ou “querer”. Trata-se de proteger a figura institucional do juiz. Pode até ser que ela fosse mais tranqüila em relação à questão do que recomendava a prudência. Em entrevista ao jornal “O Globo”, por exemplo, afirmou que “ninguém morre antes da hora”. É uma frase tola. É claro que morre! Todas as pessoas assassinadas morreram “antes da hora”. Toda morte que não é natural ou motivada pela degeneração da saúde se dá “antes da hora”. Ainda que seja verdade que ela fosse refratária a medidas mais severas de segurança, cumpria ao Tribunal de Justiça decidir. O assassinato de um juiz ocupa o topo dos crimes cometidos contra o estado de direito. Chegar aos mandantes é uma prioridade absoluta. Se esta morte restar impune, todo o Judiciário brasileiro está ameaçado e vira refém do crime organizado.
Blog Reinaldo Azevedo