Houve tempo em que todo brasileiro sabia de cor a "Canção do Soldado". A mais popular de nossas músicas militares, a ela se podia aplicar a estrofe inicial: "Nós somos da Pátria amada / fiéis soldados por ela amados". Em popularidade, só chegou perto a "Canção do Expedicionário"
No dia 7, domingo de garoa paulistana, lembrando a "Londres de neblinas frias" de Mário de Andrade, arranquei-me com esforço da poltrona à sombra da estante, para assistir, no teatro do Sesc em Pinheiros, à inauguração de ciclo dedicado ao sopro no Brasil. No meio do espetáculo, que foi todo, do começo ao fim, um deslumbramento, o gris friorento da tarde viu-se escorraçado pela súbita explosão laranja-escarlate dos fulgurantes metais da retreta: tuba, bombardina, trombones, trompetes. Era a Banda da Mantiqueira que descia as escadas atacando com brio a "Canção do Soldado". Não houve quem não se erguesse para cantar ou marcar o compasso com as palmas. Fiquei a cismar sobre o porquê do intenso brasileirismo da canção. Além da melodia, mais jubilosa que bélica, acho que se deve a dois fatores.
O primeiro é a letra. Assim como nos hinos oficiais ou nos sambas-enredos, ela está encharcada do gongorismo popular, o equivalente, na poesia, ao estilo primitivo ou ingênuo na pintura e escultura. Veja-se esta escolha kitsch de palavras: "Nas cores da nossa farda / Rebrilha a glória / Fulge a vitória". Esse "rebrilha" é um achado! Uma amiga minha, Marília Sardenberg Zelner, hoje cônsul-geral no Porto, filha de militar, tendo peregrinado, na infância, de quartel em quartel, chamou sua boneca de "Rebrilha Glória", como se fosse um nome duplo.
O outro aspecto é o da ideologia popular de rejeição da guerra, da cultura brasileira da paz. Quem imaginaria o exército prussiano, os truculentos fuzileiros ianques, até os chilenos de passo de ganso, cujo lema é "Por la razón o por la fuerza", marchando ao som de um hino ao pacifismo. "A paz, queremos com fervor/A guerra, só nos causa dor"?
Mas não vim aqui falar de música militar, e sim do "Sopro do Brasil". É imperdível, embora eu mesmo, que tive de voltar a meu exílio sem sabiá, terei de perder o resto do ciclo. Se fosse crítico, escreveria sobre tudo que me fascinou. Para começar, as crianças, bando alegre que invade a cena com assobios, apitos, varinhas mágicas que sibilam no ar com sons incríveis.
Logo após a alegria da infância, a do menino de 80 anos, "seu" Tavares da Gaita, sertanejo miúdo de Caruaru, de chapeuzinho e roupinha modesta, que transforma a gaita de boca em orquestra de forró, com harmonia, ritmo, melodia. Não contente, ainda inventa instrumentos, a combinação de talento na tradição e criatividade na busca, que é a marca do nosso povo. Em contraponto erudito, mas dentro da mesma linha de inventividade, o grupo Uitku, sutilíssimo nos instrumentos de sonoridades cósmicas, que fazem da "Aquarela do Brasil" uma peça de vanguarda.
A Mantiqueira, então é, puro deleite. Regalei-me, sobretudo, com os maxixes de Pixinguinha. Menino ainda, fui dos que redescobriram, há meio século, no teatro do largo da Concórdia, a Velha Guarda ressuscitada por Almirante, com sobreviventes de Os Oito Batutas, Donga, por exemplo, tocando prato e faca. Lundus, sambas de roda, pontos de macumba. Nunca mais tinha ouvido ao vivo alguns desses maxixes, como "Proezas do Solon", o dentista de Pixinguinha, que nos trazem de volta o Rio de Machado de Assis.
O maestro Pestana, de "Um Homem Célebre", cujo sonho era emular Mozart e só conseguia tirar do piano polcas buliçosas, de nomes estrambóticos ou brejeiros como "Candongas Não Fazem Festa" ou "Não Bula Comigo, Nhonhô". O velho bruxo não era um visual. Sua literatura é muito mais povoada de música, ópera, teatro, que de pintura. Além do Pestana, do tenor aposentado, amigo de Dom Casmurro, o maestro Romão Pires, o Queirós, de "O Diplomático", que inspirava o comentário: "Não imaginam como ele é saudoso na flauta!".
É esse o nó do problema. A flauta, a clarineta, a retreta do coreto eram indispensáveis no passado. Depois, a música brasileira empobreceu de certa forma e se limitou às cordas e à percussão. Ótimas, sem dúvida, mas falta algo. O que seria do jazz sem os metais que os ex-escravos obtiveram das bandas militares da Guerra Civil? Temos de resgatar nossos metais e madeiras. Como menino que tentou, sem talento, aprender flauta, sax, ocarina, gaita, conservo a paixão frustrada do sopro. Fiquei, assim, feliz com a iniciativa de valorizar o sopro.
Miriam Taubkin, a diretora, fez uma apresentação de grande singeleza e sensibilidade. Sopro, lembrou, é espírito. Estar inspirado é ter dentro de si o sopro, o mesmo com que Deus deu vida ao barro.
No livro dos Reis, quando Elias foge à fúria de Jezabel e espera na montanha que o Senhor lhe fale, desencadeia-
Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).
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