segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

FALTA PODER POLÍTICO PARA INVESTIGAR BANQUEIROS AMERICANOS

Carlos Drummond
De Campinas (SP)
Meses depois da eclosão da crise das hipotecas subprime, em 2008, políticos americanos sugeriram a constituição de uma comissão para investigar Wall Street e identificar responsabilidades das instituições financeiras no colapso. A porta-voz da Casa Branca, Nancy Pelosi, sugeriu ao Secretário do Tesouro, Timothy Geithner, a criação de um organismo como a Comissão Pecora, formada em 1932, para apurar os atos dos banqueiros que contribuíram para a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e da Grande Depressão subsequente. Os resultados das investigações da comissão, comandada pelo promotor Ferdinand Pecora, levaram à fundação do Securities Act de 1933 e da Securities and Exchange Commission, encarregada de fiscalizar o mercado de capitais, entre outras medidas de reorganização e disciplinamento da área financeira. Em editorial, o jornal The New York Times também defendeu uma comissão no estilo da dos anos 1930, ou de audiências como as do caso Watergate, nos anos 1970.
À medida que os bancos recuperam terreno, no entanto, as discussões sobre a formação de uma nova Comissão Pecora tornam-se cada vez mais esparsas. Este é um dos problemas para se tentar algo parecido com a iniciativa dos anos 1930. O segundo obstáculo é a peculiaridade do organismo citado como referência. A Comissão Pecora tinha poder de intimação e interrogou os maiores banqueiros da época, de Charles Mitchel, presidente do National City Bank, a John Pierpont Morgan, dono do Morgan.
Outra era a época, outra a estatura dos dirigentes. Quando Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidência dos Estados Unidos, quatro anos depois da quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e em meio à Grande Depressão, o país estava arrasado e a população, desesperada. A média de 60 falências de bancos por mês em 1930 aumentara para 254 em novembro e 344 em dezembro do mesmo ano. No dia da posse, quatro de março de 1933, quase metade dos 20 mil bancos existentes em 1929 havia falido. Nove milhões de americanos haviam perdido para sempre o dinheiro depositado em suas contas. Dezenas de milhões passavam fome.
Durante a campanha, em comícios que reuniam as maiores multidões vistas nos Estados Unidos até aquele momento, Roosevelt criticara a "manipulação sem escrúpulos dos jogadores profissionais e do sistema corporativo" e o "interesse de uns poucos poderosos em transformar a vida de metade da população em bucha de canhão da indústria".
A fúria popular contra os bancos daria suporte a ações duras do governo. No seu sexto dia na Casa Branca, Roosevelt decretou feriado bancário de uma semana. Quinhentos bancos jamais reabririam as portas. A confiança na firmeza do novo presidente e na sua atitude em favor da sociedade ficou evidente quando, na semana seguinte, a população acorreu aos bancos sobreviventes não para retirar, mas para depositar dinheiro. "Os mercadores de dinheiro se evadiram do altar do templo da nossa civilização. Nós agora podemos restituir esse templo às antigas verdades", declarou Roosevelt.
Em março de 1933, quando Roosevelt tomou posse, a investigação sobre as causas da quebra da bolsa de Nova York, iniciada em 1932 pela Comissão do Senado sobre Atividade Bancária e Moeda, atingira grande intensidade. As audiências comandadas pelo quarto conselheiro-chefe para a investigação, Ferdinand Pecora, promotor assistente de Nova York, desnudavam práticas delituosas dos donos das instituições financeiras.
As revelações de Pecora, divulgadas com destaque pela imprensa, causariam comoção nacional e contribuiriam para constituir um ambiente político favorável à redução do espaço dos bancos na sociedade e à ampliação da receptividade às reformas de Roosevelt. A missão inicialmente atribuída a Pecora, empossado no final de janeiro de 1933, seis semanas antes do prazo de encerramento dos trabalhos, era redigir o relatório final do trabalho de um ano da comissão. O promotor considerou as investigações incompletas e solicitou um mês para audiências adicionais. Autorizou-se o prosseguimento da tomada de depoimentos, boa parte feita pessoalmente por Pecora. A comissão ouviu centenas de banqueiros, executivos e autoridades do mercado financeiro e os trabalhos se prolongariam por um ano.
Pecora era um promotor competente, dotado de uma memória prodigiosa e com grande capacidade de explicar transações e manobras complexas do mercado financeiro em linguagem simples. Perguntou a Charles Mitchell, presidente do National City Bank, atual Citicorp, banqueiro mais importante da sua época: "Você não preparou essa transação fictícia¹ com a sua mulher, para venda das ações dela com prejuízo de modo a você não ter que pagar impostos neste ano?" O interrogatório ocorreu antes da posse e quando Roosevelt assumiu o assunto estava nas manchetes dos jornais do país.
Havia mais de um escândalo no banco comandado por Mitchell. Quando o mercado de ações afundou em 1929, o National City ofereceu empréstimos sem juros aos seus executivos --- os maiores bônus que eles já haviam recebido --- enquanto convenciam empregados de baixa renda a comprar ações do banco, a 500 dólares em média. Estas ações, depois da quebra, eram negociadas a 30 dólares.
Após interrogar Mitchell, Pecora colheu depoimentos de outras figuras destacadas do mercado financeiro como o presidente da bolsa Richard Whitney e de banqueiros de investimentos como Thomas Lamont, Otto H. Kahn, e Albert H. Wiggin; especuladores do mercado de commodities como Arthur W. Cutten. O testemunho de maior repercussão foi o de John Pierpont Morgan, que causou grande indignação ao admitir que ele e diversos sócios não tinham pago imposto de renda em 1931 e 1932²
As pessoas comuns sentiam-se ultrajadas com o que ocorria em Wall Street. Os banqueiros também, a seu modo. Acostumados a agir sem dar satisfações, assistiam pasmos aquele siciliano filho de sapateiro, que recebia 255 dólares por mês, questionar a sua integridade.
Roosevelt foi um grande impulsionador das audiências. Encontrou-se secretamente com Pecora em várias ocasiões. Sugeriu que, depois de Mitchell, a próxima pessoa ouvida fosse John Pierpont Morgan. O presidente que assumiu em meio a maior crise bancária da história precisava implantar reformas que contassem com respaldo popular. O impacto das audiências comandadas por Pecora reforçava esse apoio.
Pecora era mais do que um advogado competente e um funcionário zeloso. Enquanto interrogava os chefões de Wall Street e os levava a contar o que haviam feito de errado, empreendeu uma investigação abrangente sobre como o mercado financeiro funcionava de fato. Enviou questionários para todas as instituições sobre os mecanismos básicos da operação do negócio. As respostas a essas questões compõem um longo relatório ao Congresso, base de uma tripla legislação que mudou drásticamente o sistema financeiro americano, de ente autônomo plenipotenciário em sistema a serviço da sociedade: Glass-Steagal Act e o Securities Act, de 1933; e o Securities Exchange Act, de 1934. O Glass-Steagal Act criou o Federal Deposit Insurance Corp., que garantiu os depósitos dos cidadãos nos bancos; ampliou o poder de supervisão dos bancos pelo Federal Reserve e separou os bancos das seguradoras e das instituições financeiras de investimentos. Esse conjunto de instrumentos seria decisivo para estabilizar o mundo financeiro por meio século.
O Glass-Steagal Act foi abolido nos anos 1990, no governo de Bill Clinton, que sancionou também a remoção da regulação dos derivativos, atos que contribuíram para o desencadeamento da crise de 2008.
1 - Em inglês, wash sale; compra e venda de um valor mobiliário, simultaneamente ou dentro de um curto período.
2 - Mitchel foi obrigado a renunciar à presidência do National City Bank. Whitney, cinco anos mais tarde, cumpriu pena de cinco anos de detenção no presídio de Sing Sing por roubar dinheiro de investidores. Cinco mil pessoas assistiram ao seu embarque. O ex-presidente da Bolsa de Nova York chegou à ilha-presídio em companhia de um estelionatário e de um assaltante .
Carlos Drummond é jornalista. Coordena o Curso de Jornalismo da Facamp
Redação Terra

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