quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

No tempo de Noel Rosa, cigarro era letra de samba, e não de lei

Por Cássio Schubsky
O ano começou embalado com integrantes da escola de samba Vila Isabel dançando em plena Academia Brasileira de Letras, para celebrar o centenário de nascimento do compositor carioca Noel Rosa neste ano de 2010, tudo sob o olhar sisudo de Machado de Assis, impassível estátua de bronze.
Não deixa de ser divertido ver uma casa tão carrancuda, cenáculo em que se resolvem os destinos da língua portuguesa, o certo e o errado, o trema e o acento, o hífen e a vírgula, render loas ao poeta da Vila, que era uma espécie de oposto da Academia, ou seja, pura irreverência. Em 26 anos de vida, Noel compôs centenas de canções, fustigou a moral e os bons costumes, enalteceu a boêmia, sambou sobre as cabeças das hostes conservadoras do País – enfim, pintou e bordou, deitou e rolou, bebeu e fumou.
Como é sobejamente sabido, o palco para Noel cantar e compor eram os botecos da cidade maravilhosa, madrugada adentro. Imagine só Noel Rosa hoje em dia. Quase impossível. Seria um infrator da lei seca e da lei antifumo, sofreria multas seguidas, iria à bancarrota rapidinho... ou, como ele dizia gostosamente em sua canção Com que roupa, iria “acabar ficando nu”.
Cito três exemplos – dois para a lei antifumo e um para a lei seca. Na famosa composição Conversa de botequim, à certa altura, o cantor, falando em primeira pessoa, ordena ao garçom: “Não se esqueça de trazer palito, e um cigarro pra espantar mosquito”. Impossível vislumbrar essa cena no Brasil de hoje, em que a restrição ao cigarro tomou ares de punição severa a quem fuma e a quem deixa fumar. No caso do samba em questão, seriam multados Noel e o garçom (ou o dono do “estabelecimento”). Apenas o mosquito poderia circular livremente, sem brasa ou fumaça que o importunasse. Talvez o compositor, se estivesse vivo, às vésperas de chegar aos 100 anos, adaptando-se aos “novos” tempos, tivesse que mudar o nome da música para Conversa de fumódromo...
Num rasgo de genialidade, em outra composição boêmia, intitulada Pela décima vez, blasfema o sambista, despeitado: “Joguei meu cigarro no chão e pisei/Sem mais nenhum, aquele mesmo apanhei e fumei/Através da fumaça, neguei minha raça, chorando a repetir/Ele é o veneno que eu escolhi para morrer sem sentir”. Pois, caro Noel, hoje você teria que escolher outro veneno – cicuta, talvez.
É verdade que Noel Rosa vivia numa época em que se podia fumar à vontade, em qualquer lugar, quando os fumantes intimidavam os não-fumantes, que, acuados, aceitavam tudo, cabisbaixos. Mas, do jeito que a coisa vai, daqui a pouco vão inventar um tubo, uma espécie de cilindro circulator Tabajara, para uso individual, exclusivo e obrigatório dos fumantes, em todos os “estabelecimentos”, públicos e particulares, em casa e na rua, no trabalho e no lazer.
Pensando bem, esse negócio de samba, de boêmia, de cigarro é tudo muito politicamente incorreto, anacrônico, coisa do passado, já era. Com a lei seca, fica muito arriscado tragar o quinto copo de cachaça e sair por aí, como diria Ari Barroso em sua Camisa amarela. Nem imagina Noel (eis o terceiro exemplo mencionado acima), em Último desejo, esbravejando: “Às pessoas que eu detesto/Diga sempre que eu não presto/Que o meu lar é um botequim/Que eu arruinei a sua vida/Que eu não mereço a comida/Que você pagou pra mim”.
Nem tragar cachaça, nem tragar cigarro. Aos 100 anos, Noel Rosa está tecnicamente proscrito. Não será de espantar se as letras de suas músicas forem consideradas apologia ao crime ou, quiçá, à contravenção penal!
O negócio é ouvir axé, sacudir o popozão e tomar energético neste Carnaval. Tudo dentro da lei. Argh! Agora, todo cuidado é pouco, porque, do jeito que a coisa vai, logo, logo, piada e risada vão dar cadeia! Não, não, nada disso. Pensando bem, hic, um brinde a Noel e ao fumus boni iuris, porque“quem é bacharel, não tem medo de bamba”!
Cássio Schubsky é editor, historiador e diretor editorial da Editora Lettera.doc
Consultor Jurídico

Nenhum comentário:

Postar um comentário